quarta-feira, 22 de outubro de 2008

A CRÔNICA DE UMA TRAGÉDIA REPETIDA

Eram seis horas da tarde de uma sexta-feira. Na tela, o último capítulo de um campeão de audiência. Ninguém queria perder a chance de ganhar alguns pontos naquele espetáculo e, por isso, foi possível acompanhar simultaneamente em várias emissoras, através do rádio, da TV e da Internet, o final daquela mini-série em cinco capítulos.

O nome do programa ninguém lembrava. Por vezes, alguns espectadores não sabiam dizer se se tratava de realidade ou ficção. Os gêneros também se misturavam na cabeça do público, perdido entre uma história de suspense policial e um romance trágico. Pena e raiva se revezavam no coração do público.


A polícia cercava o local com o que tinha de melhor. O namorado cego pela paixão se preparava para devolver a amada e a amiga adolescentes, após mantê-las refém por uma centena de horas. O espectador, acostumado com finais felizes, refestelava-se no sofá de casa e fazia suas apostas com familiares de como aquilo acabaria.

A cena estava viva na mente de todos: o momento em que, por um descuido, o jovem trabalhador sem vícios travestido de criminoso colocaria tão somente o rosto na janela, sem refém, e levaria um tiro mortal, ao vivo. Ou quando o bandido abriria a porta – como o fez tantas vezes – e permitiria o acesso dos policiais ao cativeiro. Rendido e possivelmente ferido o seqüestrador, as duas reféns estariam libertadas. Ou ainda, quem sabe, até mesmo o rapaz se entregando e todos saindo ilesos sob palmas dos vizinhos.

Porém, o público foi frustrado.

Para começar, os policiais ignoraram estas três possibilidades. Os principais narradores da história – apresentadores e repórteres – duvidaram em muito da inteligência dos espectadores. Teve um, acredite, que chegou a afirmar que não havia feridos, no exato momento em que foi possível observar uma das reféns sair ensangüentada.

Chocado, o público se perguntou quais as chances de algo sair tão errado. Mas passados alguns dias, os espectadores retomaram a rotina, e teve até quem se lembrasse que o final absurdo não era tão inédito assim.

Numa quarta-feira, oito anos antes, este mesmo público acompanhou a história de um criminoso que fez 11 passageiros de um ônibus reféns. O impensável também aconteceu. Uma professora tomada como escudo morreu ao vivo, após levar um tiro de um policial e outros três do seqüestrador.


Quando o outro criminoso (aquele das adolescentes) apareceu rendido e sendo colocado a base de socos para dentro de uma viatura, os espectadores também lembraram do que aconteceu com o homem do ônibus. Mas essa parte do final, pelo menos, foi diferente.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

OBSERVAÇÃO NA SÉTIMA ARTE

Reportagem é observação. Ponto.

Baseado nesta afirmação, recupero aqui um texto sobre dois excelentes filmes - um clássico e um contemporâneo - em que o exercício da observação é exercido com excelência em ambos os casos. Sem mais delongas...


O que é acontece quando um atento observador pinça diversos elementos de uma determinada realidade, os eleva à enésima potência e depois os reúne? Seria uma caricatura? Com o desprendimento que a liberdade criativa confere aos artistas, foram Charles Chaplin e Constantin Costa-Gavras, dentro de seus limites, também exemplo de observadores. Esse é o ponto em comum observado nos dois filme que tratam sobre o mercado de trabalho, em dois contextos históricos distintos.

A obsessão racionalista em uma linha de montagem automotiva do início do século 20 na América e a paranóia competitiva por uma vaga de trabalho na Europa contemporânea tem mais a dizer do que as trapalhadas de Charles Chaplin transparecem. Ou a tentativa de Bruno Davert em eliminar os seus concorrentes no melhor estilo faroeste. As risadas do público são o retrato desta identificação.

Independente de serem ou não comédias, “Tempos Modernos” e “O Corte” falam sério quando traduzem os elementos que refletem os dramas pessoais dos trabalhadores em suas épocas.

Em uma análise superficial, as trapalhadas do vagabundo para se manter no mercado de trabalho e do seu chefe em elaborar maneiras de evitar que os funcionários percam tempo almoçando são sim apenas engraçadas. Mas é justamente o que ultrapassa os tombos sincronizados que mostra a atualidade do assunto.

Evidentemente que ninguém seria hoje contratado exclusivamente para apertar parafusos na sincronia do relógio, mas e quanto a ser preso por roubar bananas? Ou se sentir desconfortável sob a pressão do olhar do chefe ao parar para ir ao banheiro? Uma rápida busca na internet mostra a crescente onda de condenações trabalhistas de empresas que instalaram câmeras de vigilância em vestiários e banheiros de funcionários.
Surrealismo?


Se “Tempos Modernos” é mais sutil na crítica, o que dizer de Bruno Davert e sua pistola Luger alemã sobre o colo, dentro de um saco de papel, eliminando um por um os seus concorrentes a uma vaga em uma empresa de papel, após dois anos amargurando o desemprego? A pressão é ainda mais sutil, o filme é menos maniqueísta e é difícil descobrir o culpado. Agora, Bruno se vê à frente de colegas que sofrem o mesmo drama, que choram, que sentem vergonha por estar fazendo um “bico” para manterem alguma dignidade e algum dinheiro. A empresa, por sua vez, teve que aderir à política globalizante que impõe a necessidade de se fundir ou desaparecer.

Neste contexto, chutes nos traseiros são substituídos por programas de demissão voluntária que propõe, entre outras coisas, a troca do emprego por ações da nova empresa. Ou seja, o empregado é um dos donos da firma, mas não tem mais o direito de permanecer trabalhando lá. Impotente, o pai de família se distancia dos seus e perde o controle do que os filhos estão fazendo, o casamento afunda e o público ri menos.


Mas como poucos pagam para sofrer no cinema, “O Corte” reserva inteligentes ironias que surpreendem o espectador, graças ao roteiro que distende ao máximo os erros do protagonista até o ponto de causar a impressão de que nada mais deve dar certo. E é justamente esse somatório de trapalhadas que reserva o final feliz, no melhor estilo maquiavélico.

No entanto, até mesmo o que parece ser uma caricatura extrema da crise no mercado de trabalho - a ponto de se matar para conseguir um emprego – encontra eco nos nossos dias.

Em janeiro de 2006, Carolina de Paula Faria dos Santos, então com 22 anos, foi presa em Cubatão (SP), acusada de encomendar a morte de uma colega de trabalho. O motivo: a estagiária queria permanecer na empresa do ramo de petróleo, que não oferecia mais vagas. A vaga tão cobiçada por Carolina, que recebia R$ 600 por mês, era a de assistente de planejamento financeiro, onde era pago o salário de R$ 1,5 mil. Em fevereiro de 2006, em entrevista a uma revista, a criminosa hoje condenada a 30 anos de prisão por homicídio duplamente qualificado sentenciou: “Ela morrendo, eu poderia ter minha chance”.
Surrealismo?

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

UM POUCO DE PRÁTICA


Teorizar é muito bom, mas em reportagem sair às ruas é um imperativo. E o exercício de sujar os sapatos já me trouxe algumas experiências enriquecedoras no sentido profissional e, sobretudo, humano.

É o caso da matéria abaixo, escrita há exatos dois anos para a disciplina de Redação II, na Ufrgs. Trata-se de um relato honesto - por vezes pueril, é verdade - de quatro estudantes de jornalismo em início de vida acadêmica, que um dia se entregaram intensamente na busca de algumas histórias dentro de uma parte da cidade conhecida pelas manchetes policiais: a Vila Timbaúva.

"Formada por cinco núcleos que ganharam nomes a medida em que foram sendo povoados, a Vila Timbaúva é um universo de pouco mais de dez anos onde moram cerca de sete mil pessoas. São eles: as vilas Timbaúva 1, 2, 3 e 4 e o Recanto do Sabiá. Essa separação não é precisa, uma vez que o número de famílias que vêm de outros pontos da cidade e do próprio Estado não pára, dando origem a novos núcleos. Além disso, o local é próximo a outras comunidades carentes de Porto Alegre, como os loteamentos Wenceslau Fontoura e Porto Novo. Para a prefeitura, todo esse espaço é apenas uma parte do bairro Mario Quintana, com uma população de 21.848 moradores e uma das menores médias de renda por chefe de família: pouco mais de dois salários mínimos."

O resto está aqui.


Na foto, a parte mais carente da comunidade, o Recanto do Sabiá.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

KOVACH FALA

O chefe do “Comitê dos Jornalistas Preocupados”, este do post abaixo, passou por uma universidade do norte de Portugal pelos idos de 2007 e falou sobre o que pensa a respeito da reportagem. Vale o registro, vale prestar um pouco de atenção.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

OS NOVE MANDAMENTOS


Caso o jornalismo fosse uma religião, quais seriam os mandamentos de seus seguidores?

Não com a intenção de criar uma seita, mas sim de elaborar um manual de conduta para jornalistas, dois norte-americanos lideraram a criação de algo que chamaram de “Comitê dos Jornalistas Preocupados” e saíram pelos EUA para ouvir algumas pessoas durante dois anos. Era 1997.

Vinte e uma discussões públicas e três mil pessoas consultadas depois – sendo cerca de 300 jornalistas -, Bill Kovach e Tom Rosenstiel compilaram as conclusões e lançaram “Os elementos do Jornalismo – O que os jornalistas devem saber e o público exigir”.

Em algum lugar na orelha da publicação, diz que o livro está escrito para jornalistas, mas que qualquer cidadão que estivesse curioso em saber porque as coberturas noticiosas andam tão ruins deveria lê-lo. Não recomendo isso.

“Elementos do Jornalismo” é um profundo e comprometido mergulho na busca de respostas para alguns problemas da profissão. Mas é também um dedo na ferida de quem já passou por uma redação e já descobriu do que são feitas as leis e as salsichas. Por isso, é justamente a sua relação entre a teoria e a prática que o torna tão interessante. Para os de fora, soaria ficção científica.

Mas esse não é um livro apocalíptico.

“Elementos” tem como grande contribuição sintetizar os nove mandamentos para um bom jornalismo. Alguns tão óbvios que dá vontade de chorar quando lembramos que não estão sendo praticados, e que por isso estão ganhando um livro. Um exemplo, o primeiro mandamento: “A primeira obrigação do jornalismo é com a verdade”.

Definitivamente, Jason Blair não leu este livro.

“Elementos” é mais do que um aparente guia moral de "recém-formados jornalistas virgens cristãos de bom coração". Kovach e Rosenstiel provam por A+B que cada um destes nove mandamentos possui uma carga de relevância visceral para quem se diz jornalista, e ajudam a compreender como, na verdade, é simples fazer jornalismo: em resumo, é uma questão de caráter. A pesquisa traz dados, números, cases e toda uma sorte de outras boas justificativas para embasar isso.

Por fim, apenas para manter o óbvio, este livro deve ser lido sob a ótica de um trabalho organizado através da realidade norte-americana. Isso pode trazer uma sensação que transita entre o tédio e o surpreendente, principalmente quando se percebe como o pensar jornalismo ainda engatinha por nossas bandas.

domingo, 7 de setembro de 2008

101 DIAS


Cheguei às últimas páginas de uma bela lição de jornalismo e competência profissional: “101 dias em Bagdá”, da igualmente bela jornalista norueguesa Asne Seierstad (foto), conhecida também por escrever “O livreiro de Cabul”. Nele, a repórter narra as agruras e os obstáculos de contar a história de iraquianos que, após anos de uma ditadura implacável, se vêem à frente de bombas e estilhaços que irrompem janelas e portas matando família inteiras, ao mesmo tempo em que tentam tocar a vida como se nada estivesse acontecendo. Até mesmo para uma jornalista escandinava vinda de um país frio em que nada parece acontecer - mas que possui um vasto currículo de cobertura de outras guerras - aquele cenário é brutal. Ela chora, pelo menos umas duas vezes até agora.

Paralelo ao produto de seu trabalho, ela descreve os desdobramentos e os obstáculos que precisa superar quase diariamente apenas para poder mandar seus artigos aos jornais para os quais trabalha, os boletins para rádios européias e canadenses, as entradas ao vivo para televisões de um punhado de países... ufa!

Foi neste capítulo que eu fiquei com vergonha.

“101 dias em Bagdá” é uma leitura envolvente e que flui graças à tensão da narrativa e ao seu conteúdo histórico. São histórias de Mohameds e Fátimas que a televisão não mostrou, e nem poderia. Provavelmente também choraríamos.

Em tempo: não sei se compraria esse livro, mas gratamente caiu-me às mãos como cortesia após ter a oportunidade de conhecer pessoalmente a própria Asne. Em uma concorrida coletiva em uma tarde quente de Porto Alegre, tive a oportunidade de fazer a primeira pergunta a ela – uma norueguesa que só conhecia até então pelo nome na capa de “O Livreiro de Cabul”.

- Das coberturas que você vez até hoje, qual foi a mais difícil e por que?
(Como jornalista, sempre fico curioso em saber os obstáculos das matérias mais difíceis e como se sair delas)
- Humm... I don’t know. (Pensativa). Esta é uma resposta difícil. Acho que o Iraque, por causa das circunstâncias.

Um bom motivo para não perder “101 dias em Bagdá”.

sábado, 7 de junho de 2008

FAMA E ANONIMATO


"A arte de sujar os sapatos"

A obra a estrear o blog não foi escolhida ao acaso. Embora não seja o pioneiro, Gay Talese foi o primeiro a sintetizar o fator primordial para uma boa reportagem: sujar os sapatos. Autor de um estilo classificado por muitos como elegante, o norte-americano de 76 anos ainda hoje é admirado, e uma inspiração para uma geração de jovens profissionais. Sensível, observador e perseverante, Talese é um repórter perfeccionista que conseguiu obter sucesso e reconhecimento indo na contramão do conceito de que um bom jornalista é um ser apenas obcecado pelo furo. Talese é um obcecado pela descrição fiel e honesta da realidade.

Seu método consiste antes de tudo em estar nas ruas, circulando e observando (por isso, sujando os sapatos), atrás de personagens e histórias de todos os tipos de pessoas. Em “Fama e Anonimato”, como subtende-se do título, estão as histórias de famosos e desconhecidos. O texto prima pelo estilo literário, como o próprio já declarou, necessário para retratar principalmente os anônimos “de tal forma que o leitor possa visualizá-lo” (Jornal O Estado de S.Paulo, 22 de abril de 2004).

Entre as histórias retratadas em “Fama e Anonimato”, estão a dos operários que construíram a ponte Verrazano-Narrows, em Nova York, no início da década de 1960. Talese acompanhou a rotina dos operários, visitando o canteiro de obras, o que permitiu criar uma rara intimidade com os entrevistados. Quarenta anos depois, o repórter volta ao local e revê alguns dos personagens que descreveu. A de Adlei Whitman, responsável pelos obituários do jornal New York Times na década de 1950. Durante vários anos, Whitman foi o autor de perfis de pessoas que estavam pela hora da morte. Apelidado por Talese de “Senhor Má Notícia”, o jornalista escrevia textos que ficavam na gaveta do jornal, somente esperando que o personagem da matéria morresse. E Frank Sinatra, em uma reportagem antológica realizada sem ouvir uma única vez o cantor, baseada apenas nos depoimentos de pessoas próximas ao artista.